Publicado em 3 de outubro de 2025
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Personas literárias: do Fernando Pessoa à IA — e como o Mythoria te dá uma voz que é mesmo tua

Personas literárias: do Fernando Pessoa à IA — e como o Mythoria te dá uma voz que é mesmo tua

“Quem conta a história” muda a história. Em escrita humana ou com IA, definir uma persona — o papel, tom e ponto de vista do narrador — impacta ritmo, vocabulário, diálogo e emoção. Neste guia explico, como escolher personas (com exemplos), como o Fernando Pessoa nos ensina a pensar em vozes distintas, e como isto se aplica no Mythoria.

Porquê falar de personas (humana e IA)

Se já devoraste dois ou três livros do mesmo autor e pensaste “hmm, isto soa sempre ao mesmo”, não estás a imaginar coisas. Muita gente consolida uma voz e volta a ela vez após vez — é assim com best‑sellers de page‑turner à Dan Brown, e a IA faz o mesmo se não lhe disseres quem é ao escrever. Na prática, persona é o papel que dás ao modelo: cronista irónica de cidade, contador de histórias de aldeia, detetive seco dos anos 50… Não é cosmética: orienta o que entra (o tipo de detalhe que o narrador procura) e o que sai (o estilo e a estrutura do texto).

As boas práticas de criar um prompt para Inteligência Artificial são claras: criar uma boa persona logo de inicio garante respostas e conteúdo mais consistente e mais próximo ao que o autor pretende.

Os pontos de vista que mandam na voz

POV = quem conta + de onde vê.

Primeira pessoa — 1.ª

O narrador está dentro da história. Intimidade máxima, visão parcial — e às vezes não‑fiável (o “eu” pode enganar‑se ou mentir). Ex.: “Saí de casa convicto de que o plano ia resultar.” Em Portugal, pensa no nervo confessional de Lobo Antunes; lá fora, o clássico Holden de O Apanhador no Campo de Centeio.

Segunda pessoa — 2.ª

Fala diretamente contigo. Imersão instantânea e cumplicidade rara. Ex.: “Apertas o casaco e dizes a ti próprio que isto vai correr bem.” É a piscadela meta do Calvino em Se numa noite de Inverno um viajante — e funciona lindamente para experiências interativas.

Terceira pessoa limitada — 3.ª (foco)

A câmara cola‑se a uma personagem e nós vemos por dentro. É o truque de imersão de Harry Potter: estamos quase sempre no olhar do Harry. Ex.: “Ana apertou o casaco; achava que o plano ia resultar.”

Terceira pessoa omnisciente — 3.ª (olho de Deus)

O narrador sabe tudo, comenta, salta no tempo, antecipa destinos. Eça brilha aqui em Os Maias. Ex.: “Ana acreditava no plano; mal sabia que o Rui já o sabotara.”

Objetiva/Cinematográfica

Sem acesso a mentes, só o observável — estilo câmara de cinema. Hemingway usou muito (vê “Hills Like White Elephants”). Ex.: “Ana aperta o casaco. Chove. Passa um comboio; ela não se mexe.”

Regra de produto: no Mythoria, o POV é importante na definição de persona. O resto (tom, ritmo, vocabulário…) herda daqui.

As dimensões de uma persona

Para o Mythoria ser simples de usar e, ao mesmo tempo, poderoso, partimos de cinco dimensões nucleares e acrescentamos três dimensões complementares que podes abrir quando quiseres dar um toque mais fino. O objetivo é a tua voz ficar clara, coerente e ajustada ao leitor — sem precisares de uma mesa de mistura com vinte botões.

Tom

Vai do sério ao humorístico. Um texto mais sério privilegia gravidade e silêncio (“O silêncio depois da notícia foi total”); o humor desmonta a cena com leveza (“A notícia caiu e o silêncio fez orelhas moucas”). O tom é a cor emocional da página — muda perceções e expectativas.

Formalidade

Do coloquial ao académico. “Isto vai dar bronca” é íntimo e direto; “Tudo indicava uma escalada de incidentes” é distanciado e técnico. A formalidade define proximidade com o leitor e convenções do contexto (conto, crónica, biografia, relatório).

Ritmo

Contemplativo ou acelerado. Frases longas e imagéticas pedem respiração; cortes e verbos de ação empurram a leitura para a frente. Ritmo baixo para atmosfera e reflexão; ritmo alto para aventura, comédia e tensão.

Vocabulário

Simples ou erudito. “O rio corria depressa” comunica sem atrito; “O caudal precipita‑se, turvo, em remoinhos” traz densidade e precisão. A escolha depende da idade‑alvo, do género e da intenção (encantar, ensinar, documentar).

Ficcionalidade / Facticidade (Historiografia)

Da licença poética ao rigor factual. No extremo ficcional, a chave “boceja, velha de séculos”; no factual, “A Ponte de Pedra concluiu‑se em 1373; a chave apresenta corrosão uniforme — provável origem local”. Quando puxas para a facticidade, a persona torna‑se historiadora: datas, lugares, pessoas reais, terminologia precisa e zero invenção — perfeito para capítulos escolares, guias de museu e biografias.

É a proporção de fala direta face à narração. Diálogo alto acelera o passo, aproxima‑nos das personagens e cria comédia e energia (“— Ficas com isso?Fico.”). Densidade baixa dá espaço a descrição, introspeção e construção de mundo. O segredo é alternar: conversa sem cenário vira “cabeças falantes”; narrativa sem fala arrisca “infodump”.

Sensorialidade (também: imagética/descrição)

Quanto apelas aos sentidos e à materialidade do mundo. Baixa: “Rita atravessou a ponte”. Alta: “O granito húmido devolveu‑lhe o frio às palmas; o rio cheirava a chuva guardada”. Usar bem a sensorialidade aumenta imersão e memória do leitor — sobretudo nos mais novos. Exagera‑la e ficas com perfume literário a mais.

Subtexto / Ironia

É o que não se diz, mas se percebe — e as tensões entre o literal e o sentido. Direto: “Ela estava zangada”. Subtexto: “Ela sorriu devagar. Outra vez”. Ironia: “Plano impecável — sobretudo a parte em que falha”. O subtexto dá camadas e inteligência à leitura; em público jovem ou em textos didáticos, usa com parcimónia para não perder clareza.

Pessoa & Companhia: heterónimos como personas à séria

Como parte do meu estudo no secundário, aprendemos muito sobre Fernando Pessoa — um dos escritores portugueses mais criativos e marcantes — a par de Luís de Camões, Eça de Queirós, Miguel Torga, entre outros. O Pessoa não se ficou por pseudónimos: inventou heterónimos com biografia, estilo e visão do mundo próprios. É, no fundo, um sistema de personas antes de ser moda.

  • Alberto Caeiro olha o mundo sem metafísica: “O rio não é símbolo; é água a correr.”
  • Ricardo Reis é o estoico clássico das odes medidas: “Aceita o que os deuses trazem; o resto é espuma.”
  • Álvaro de Campos é a cidade ao rubro, do grito futurista ao íntimo de Tabacaria: “Motores! A cidade pulsa e eu com ela.”
  • Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, escreve a meia‑luz do pensamento: “A vida passa‑me pelos dedos como areia pensativa.”

Moral: no Mythoria não imitamos tiques — captamos intenções estilísticas. “À la Pessoa”, sem pastiche.

Como isto vive dentro do Mythoria

As 5 personas essenciais — descrição, POV, quando usar e exemplo alargado

Queres um arranque rápido, sem perder nuance? Aqui tens cinco vozes afinadas para famílias, grupos e empresas. Cada entrada junta descrição, POV recomendado, quando usar e um exemplo alargado com o mesmo cenário (a Rita encontra uma chave antiga numa ponte de pedra) para veres a diferença na prática.

1) O Contador de Histórias

POV recomendado: 1.ª pessoa ou 3.ª limitada.

Descrição: voz quente, empática e emotiva, com cadência de avô a contar “um caso”. Foca sentimentos, relações e a moral — transforma memórias em contos tocantes.

Quando usar: memórias familiares, a história de um casal, contos de embalar.

Exemplo: “Quando a Rita apanhou a chave, senti o mesmo arrepio que me dava quando a avó dizia ‘as coisas antigas pedem respeito’. O rio calou‑se um instante, como se nos ouvisse. Guardámos a chave no bolso, ao lado do coração, e prometemos voltar ali, não para procurar tesouros, mas para lembrar que as histórias, quando cabem numa mão, duram uma vida inteira.”

2) O Narrador Aventureiro

POV recomendado: 2.ª pessoa ou 3.ª limitada (múltiplos focos).

Descrição: transforma o comum em épico; linguagem enérgica, imaginação solta e pitadas de fantasia. A criança (ou o adulto!) vira herói da própria epopeia.

Quando usar: histórias infantis/juvenis (dinossauros, fadas, espaço), viagens e eventos com sabor a missão.

Exemplo: “A ponte ergue‑se à tua frente como um dragão de pedra. Metes a mão ao bolso e a chave tilinta: é o sinal. O mapa não está no papel — está nas luzes do rio. ‘Missão Rita, fase um: localizar a fechadura secreta.’ Sentes o vento a dar‑te um empurrão de cavaleiro. Se falhares, nada de mal: heróis também aprendem. Se acertas, bem… as portas que se abrem contam histórias que ninguém esquece.”

3) O Repórter Divertido

POV recomendado: 3.ª objetiva/limitada (com apartes de humor).

Descrição: crónica animada, leve e bem‑humorada; capta dinâmica de grupo, piadas internas e pequenas peculiaridades — como uma reportagem ao vivo.

Quando usar: grupos de amigos, equipas desportivas, colegas; festas, viagens e eventos de equipa.

Exemplo: “16:03 — ocorrência na Ponte de Pedra. A agente Rita identifica ‘objeto metálico não identificado’. Primeiras reações: ‘É do tesouro!’ (Mauro, entusiasta), ‘É da cantina!’ (Bia, realista). Procede‑se à perícia: ferrugem, peso moderado, brilho zero mas carisma alto. Deliberação do grupo: guardar a chave, tirar foto com caretas e inventar três teorias. Resultado: missão cumprida, memória garantida e um novo capítulo na crónica do bando.”

4) O Educador Amigo

POV recomendado: 2.ª pessoa e 1.ª plural (didático).

Descrição: paciente, claro e encorajador; usa perguntas simples, jogos de imaginação e exemplos concretos. Ensina quase sem se notar.

Quando usar: pré‑escolar, materiais didáticos, terapia por histórias (medos, competências sociais).

Exemplo: “Sabes o que é uma chave? É um objeto que abre coisas fechadas. Às vezes abre portas; outras vezes abre ideias. Hoje a Rita encontrou uma chave na ponte. Vamos pensar: de que material é feita? Como está o tempo — cheira a chuva? Se a chave pudesse falar, o que diria? Agora fazemos uma experiência: desenhamos a ponte, colamos um papel com a palavra ‘segredo’ e escrevemos juntos o que achamos que está do outro lado. Vês? Aprender também é uma aventura.”

5) O Cronista Institucional

POV recomendado: 3.ª objetiva (ou 3.ª limitada com rigor factual).

Descrição: clara, linear e respeitosa; celebra marcos e biografias sem aborrecer; organiza informação com datas e nomes próprios quando existirem.

Quando usar: histórias corporativas, homenagens, livros de memórias biográficos.

Exemplo: “Rita encontrou a chave às 16h03, no parapeito oriental da Ponte de Pedra. O objeto apresenta corrosão lamelar homogénea e tipologia compatível com fabrico oitocentista. O grupo decidiu preservar a peça e registar o local, prevendo consulta posterior junto do museu municipal. A descoberta foi assinalada com fotografia de registo e breve nota de campo.”

Persona personalizada (para quem gosta de afinar)

Escolhe o POV e ajusta Tom, Formalidade, Ritmo, Vocabulário e Ficcionalidade/Facticidade. Ativa técnicas como discurso indireto livre, narrador não‑fiável ou quebra da 4.ª parede. Quando estiver no ponto, guarda como preset — e está pronto para o próximo livro.

E tu — que persona literária és? ✨

Agora que já conheces as vozes do Mythoria, qual é a tua?

Se a tua bússola aponta para a ternura e a memória, és O Contador de Histórias: dás mãos aos afetos, encostas o texto ao coração e encontras significado no pequeno gesto. Se preferes transformar cada dia numa aventura, veste a capa de O Narrador Aventureiro: pegas no quotidiano e empurras‑o para a épica — porque toda a criança merece sentir‑se herói da própria página.

Se o que mais te puxa é a energia dos grupos, talvez sejas O Repórter Divertido: tens olho para o detalhe que arranca sorrisos, guardas as piadas internas e fazes de cada evento um momento para recordar. Quando queres ensinar com cuidado e proximidade, chama O Educador Amigo: perguntas simples, exemplos claros, um passo de cada vez — e, de repente, aprender fica leve. E, quando a ocasião pede respeito, datas e clareza, assume O Cronista Institucional: celebras marcos, contas a história como ela aconteceu e deixas um registo que honra as pessoas.

Escolher é simples: pensa quem deve falar (POV), para quem falas (idade, contexto) e com que intenção (emocionar, aventurar, documentar, ensinar). A partir daí, escolhe uma destas cinco personas, gera um excerto e ajusta o que for preciso com as dimensões (Tom, Formalidade, Ritmo, Vocabulário, Ficcionalidade/Facticidade). Se precisares, abre as opções de afinação (Densidade de diálogo, Sensorialidade, Subtexto/Ironia) e dá o último toque.

Prontos para começar? Escolhe a persona, escreve a primeira linha e deixa o Mythoria tratar do resto. A tua história já tem voz — falta só imaginar. 🚀